Como a primeira presidente mulher do Brasil vai se comportar no cenário internacional, agora que assumirá o comando da 8ª potência econômica do globo terrestre?
No dia 31 de outubro, a candidata Dilma Rousseff (PT) foi eleita à Presidência da República com 56,05% dos votos, contra 43,95% para seu adversário, José Serra (PSDB). A economista e ex-guerrilheira, que contou durante toda a campanha com o apoio indefectível de seu mentor, Luiz Inácio Lula da Silva, é a primeira mulher a assumir o cargo. Três dias depois da vitória no segundo turno, marcado por uma forte taxa de abstenção (20 milhões de brasileiros não votaram), Dilma aparecia no 16º lugar da lista das pessoas mais poderosas do mundo elaborada a cada mês pela revista Forbes. A conceituada publicação norte-americana colocou apenas duas mulheres à frente da presidente brasileira: a chanceler alemã Angela Merkel (6ª) e a política indiana Sonia Gandhi (9ª).
É claro que tanto poder gera altas expectativas. Grandes desafios aguardam a nova dirigente, tanto dentro como fora do país. Como Dilma vai se comportar no cenário internacional, agora que assumirá o comando da oitava potência econômica do mundo? Tentará preservar o legado de seu antecessor, que fortaleceu o Brasil nas instituições multilaterais? Terá a mesma leniência com as violações dos direitos humanos cometidas em países aliados, como Irã ou Cuba? Suas ações serão pautadas pelo mesmo ideal de pragmatismo que definiu os oito anos do governo Lula? Para responder a estas perguntas, a revista valeparaibano conversou com três especialistas em relações internacionais, que projetaram as novas orientações da política externa brasileira.
Um dos maiores argumentos da campanha de Dilma Rousseff era que, se fosse eleita, daria continuidade às ações empreendidas pelo governo de Lula, cuja taxa de aprovação é de 77%. Assim sendo, houve entre os três especialistas um consenso sobre o fato de que a nova dirigente não promoverá grandes mudanças no âmbito das relações internacionais. “A política externa continuará sendo pautada pela visão atual do PT. O que poderá haver, porém, é uma mudança de estilo. Lula dava um tom mais pessoal às conversas com os dirigentes mundiais. Dilma será provavelmente mais protocolar, até porque ainda não tem experiência no cenário internacional”, avaliou Alberto Pfeiffer, professor de relações internacionais da USP (Universidade de São Paulo) e especialista em América Latina. “Lula tinha um carisma incomparável, uma facilidade de lidar com as pessoas. Sua história e seu jeito de ser despertavam muita simpatia no exterior. Dilma não possui estas características”, acrescentou.
“Haverá alguns ajustes, mas as prioridades serão as mesmas. Dilma seguirá privilegiando as relações com as nações sul-americanas, porém com menos ênfase e brilho que Lula. Ela deverá reduzir o número de reuniões bilaterais, a agenda de viagens será menos intensa. Haverá uma mudança de tom, mas não de objetivos”, resumiu Ricardo Sennes, professor de relações internacional da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e diretor de uma consultoria especializada em comércio e investimentos internacionais.
Na opinião dos especialistas, o próximo ministro das Relações Exteriores, cujo nome deve ser definido ainda este mês, também contribuirá para a mudança de estilo. Antônio Patriota é um dos mais cotados para substituir o atual titular do cargo, Celso Amorim. Na opinião de Reginaldo Nasser, outro professor de relações internacionais da PUC-SP, a escolha de Patriota favoreceria a continuidade. Já para Sennes, Patriota tem um perfil diferente de Amorim. “Ele é mais disciplinado, contido. Não tem o mesmo brilho, nem os mesmos contatos no cenário internacional. Terá, portanto, menos autonomia para atuar”.
Foco na economia
Para Pfeiffer e Sennes, a tendência é que nas relações com os outros países, o Brasil de Dilma deixe um pouco de lado o aspecto político para se focalizar na parte econômica. “Dilma dará prioridade ao fortalecimento das relações comerciais. Sua agenda será pautada pelas consequências da crise global, como vem sendo, aliás, a de todos os principais dirigentes mundiais, de Barack Obama (EUA) a Hu Jintao (China)”, afirmou Alberto Pfeiffer. “Dilma será mais pragmática, sobretudo do ponto de vista econômico. Tentará agilizar o comércio, suprimir barreiras e obstáculos. Buscará resultados concretos”, enfatizou Sennes.
“Dilma vai seguir os passos de Lula e fortalecer as relações com os países do Mercosul. No entanto, acredito que hoje, as maiores prioridades do Brasil se chamam China, Rússia e Índia. Assim, o governo brasileiro deverá intensificar sua atuação em organismos multilaterais, como o G20. O Mercosul acabará ficando em segundo plano. O Brasil aspira desempenhar um papel global, e não apenas regional”, declarou Nasser. De fato, cabe ressaltar que a primeira viagem oficial de Dilma Rousseff para o exterior foi a uma reunião de cúpula do G20 na Coreia do Sul, a qual acompanhou como convidada já que toma posse no dia 1º de janeiro de 2011.
“O Brasil deverá seguir ativo nos grandes foros econômicos internacionais, como a OMC (Organização Mundial do Comércio) ou o G20. Terá um papel preponderante nos debates sobre energia e meio ambiente. Em compensação, provavelmente deixará de lado suas ambições políticas, como a aspiração de obter uma vaga de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas)”, avaliou Sennes.
Sobre este último ponto, Reginaldo Nasser tem uma opinião diferente: para ele, o Brasil continuará sendo um protagonista no jogo político mundial. “Lula deu uma maior projeção ao Brasil no cenário internacional. O país passou a se posicionar em assuntos mais complexos, como quando exerceu, junto com a Turquia, um papel de mediador na questão nuclear iraniana, um tema tradicionalmente reservado às grandes potências. Dilma Rousseff deve continuar nessa linha, até para não perder o legado de Lula. É possível que não tenha o mesmo desempenho, pois não tem o mesmo carisma. Mas a doutrina não deve mudar”.
Ao contrário, Ricardo Sennes e Alberto Pfeiffer estão convictos de que a nova presidente não intervirá na questão nuclear iraniana. “Dilma não vai tomar partido sobre este assunto, pelo menos por enquanto. Ela não tem experiência no jogo político, e seria muito arriscado para ela se posicionar num debate tão espinhoso”, avaliou Pfeiffer. “A questão do programa nuclear iraniano foi muito desgastante para o Brasil. O país entrou de forma ingênua em um assunto complexo, e saiu arranhado. O custo político foi elevado. Por isso, acredito que Dilma se manterá longe deste debate”, disse Sennes.
Relações protocolares
De fato, as relações com o Irã já causaram vários problemas para o Brasil. Obedecendo a seu ideal de pragmatismo, Lula nunca condenou diretamente a nação persa, fechando os olhos para as violações dos direitos humanos cometidas pelo regime do presidente ultraconservador Mahmud Ahmadinejad. O presidente brasileiro deu diversas declarações polêmicas sobre os acontecimentos no Irã. Qualificou de “choro de perdedores” os protestos organizados pela oposição iraniana após a controversa reeleição de Ahmadinejad e reprimidos com extrema violência pelo poder. Referindo-se à sentença de morte por apedrejamento proferida contra Sakineh Mohammadi Ashtiani, uma iraniana acusada de adultério, Lula recusou-se a intervir, sob o argumento de que “se as pessoas começam a desobedecer as leis delas para atender pedidos de presidentes, vira uma avacalhação”.
Diante da repercussão negativa da declaração, acabou oferecendo asilo político à iraniana, mas a proposta foi rejeitada pelas autoridades locais. Sobre este caso, Dilma Rousseff surpreendeu ao adotar uma postura claramente mais firme que a de seu mentor. Apenas três dias após sua eleição à presidência, classificou como “bárbara” a execução de Sakineh. “Confesso que fiquei surpreso com a declaração de Dilma sobre Sakineh. Talvez tenha sido uma reação instintiva, pelo fato dela ser mulher”, disse Ricardo Sennes.
Na opinião de Reginaldo Nasser, Dilma tentará evitar as frases polêmicas pronunciadas por seu predecessor sobre o Irã, mas também sobre Cuba. Em março deste ano, Lula comparou os prisioneiros políticos cubanos em greve de fome a criminosos comuns. “Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrassem em greve da fome para pedir liberdade”, disse à época. Em se tratando da ilha comunista, os três especialistas concordaram sobre o fato de que a nova presidente manterá relações amistosas com o governo cubano de Raúl Castro, mas sem levá-las para o lado pessoal.De qualquer forma, com lembrou Alberto Pfeiffer, as relações entre Brasil e Cuba são meramente simbólicas. O mesmo deverá acontecer com outros dirigentes polêmicos que contaram com o apoio explícito de Lula em diversas oportunidades, como Hugo Chávez, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia. “As relações com a Bolívia, a Venezuela e os outros países da América Latina não serão alteradas por motivos estratégicos. O Brasil quer assumir um papel de liderança no continente, e precisa para isso manter boas relações com todos os dirigentes eleitos da região”, analisou Nasser.
“A estratégia do Brasil em matéria de política externa seguirá sendo baseada no diálogo, sem restrições de nenhum tipo. Dilma manterá as portas abertas para todos, mas não será tão efusiva como Lula”, destacou Pfeiffer. “Para lidar com Chávez ou Morales, Dilma Rousseff adotará o pragmatismo de Lula, mas não se envolverá pessoalmente. Manterá com estes dirigentes relações mais protocolares. Provavelmente não fará declarações contundentes sobre eles, nem de repúdio, nem de apoio”, avaliou Sennes.
EUA e Europa
Tanto Pfeiffer como Sennes insistiram na importância de melhorar as relações com os Estados Unidos. “As relações com os EUA esfriaram bastante durante o governo de Lula. Um dos motivos foi a postura antiamericana de Amorim. O Brasil perdeu espaço nas relações comerciais com este país, e tem interesse em recuperar este espaço. Antônio Patriota, que foi embaixador nos Estados Unidos entre 2007 e 2009, poderia contribuir para esta reaproximação”, acredita Ricardo Sennes. “Algumas posições do governo brasileiro desagradaram os americanos, mas não é nada que não possa ser superado. As relações com os EUA precisam melhorar, sobretudo no aspecto comercial, que é o que realmente interessa. Hoje, os EUA recebem apenas 10% do total de exportações do Brasil. Tradicionalmente, este percentual oscila entre 20% e 25%”, lamentou Alberto Pfeiffer, lembrando que “querendo ou não, os Estados Unidos são a maior potência econômica, política e militar do mundo”.
Reginaldo Nasser minimizou a importância das rusgas americano-brasileiras. “As relações com os EUA sempre foram pautadas pelo pragmatismo. Houve, e haverá tensões, mas nunca ocorrerá uma ruptura total das relações, que não seria benéfica nem para um lado nem para o outro”, explicou. Cabe ressaltar que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, foi um dos primeiros chefes de Estado a parabenizar Dilma Rousseff pela vitória de 31 de outubro.
O fato de o Brasil privilegiar o Mercosul não significa necessariamente que a União Europeia perderá relevância nas relações comerciais. Para Ricardo Sennes, os laços com alguns países da UE poderão, inclusive, ser estreitados durante o mandato de Dilma. “Lula reforçou as relações com várias nações europeias, principalmente com a França. A tendência é que a nova presidente continue nesta linha. Historicamente, a centroesquerda brasileira tem mais simpatia pela Europa do que pelos Estados Unidos”, declarou. O presidente francês, Nicolas Sarkozy, foi um dos primeiros chefes de Estado a confirmar presença na cerimônia de posse de Dilma Rousseff, marcada para o dia 1 de janeiro.
Sobre a Europa, há ainda a questão da Bulgária, onde nasceu o pai da nova presidente. A nação do leste europeu acompanhou com entusiasmo a vitória de Dilma, que já recebeu um convite oficial das autoridades locais para visitar o país. No entanto, segundo Alberto Pfeiffer, se os búlgaros esperam dela uma ajuda para resolver a crise econômica que assola o país, poderão se decepcionar. “A Bulgária está longe das prioridades do Brasil, e esta situação não deverá mudar somente porque Dilma Rousseff é descendente de búlgaros. O fato é apenas curioso, anedótico. É claro que os búlgaros vão se aproveitar desta situação para tentar estreitar os laços com o Brasil, mas nosso maior parceiro comercial naquela região é a Rússia, e isso não vai mudar”, sentenciou Pfeiffer. •
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