Transtorno do pânico já atinge 5% da população brasileira; mais de 30 mil podem ter a doença em São José, onde foi criado um grupo de apoio para os portadores da síndrome
"Aos 32 anos, tinha uma vida muito atribulada. Trabalhava como gerente de vendas na Mesbla e vivia viajando para inaugurar lojas em todo o país. Podia estar de manhã em São Paulo, à tarde no Nordeste e à noite em outro lugar. Percorria milhares de quilômetros de avião a cada semana. Certo dia, em Aracaju, Sergipe, estava prestes a atravessar a rua quando de repente, meu coração disparou. Comecei a suar frio. Minhas pernas tremeram. Parecia que meus braços pesavam 100 quilos. Perdi a capacidade de pensar, de raciocinar. Achei que fosse morrer. Não consegui atravessar a rua. Dei meia volta e fui embora para São José de carro com meu marido e minha filha. Fui direto para a casa dos meus pais e fiquei lá, trancada, por 13 anos. Não podia ir ao supermercado, ao cinema. Não conseguia sair para comprar leite na esquina. Tinha medo de tudo, até de olhar pela janela. Larguei trabalho e amigos. Só melhorei após anos de tratamento. Nunca mais entrei em um avião, nunca mais saí de São José”.
Sandra Amery, 53 anos, foi acometida por mais de duas décadas por um mal chamado transtorno do pânico, mais especificamente por uma de suas principais vertentes: a agorafobia, uma ansiedade por estar em lugares ou situações onde a fuga é difícil e a ajuda possa não estar disponível na eventualidade de ocorrer um ataque de pânico. Este quadro de ansiedade leva a uma resposta de evitação sistemática destes lugares ou situações. Naquele dia em Aracaju, Sandra sofreu seu primeiro ataque de pânico, definido pelos especialistas como uma crise de medo e desconforto intenso acompanhada de um ou mais sintomas como taquicardia, sudorese, calafrios ou ondas de calor, tremores, falta de ar, anestesia ou sensação de formigamento, sensação de desmaio, náusea, tonturas, vertigem, sensação de descontrole e medo de enlouquecer ou de morrer. O transtorno, ou síndrome, do pânico, é caracterizado pela repetição destas crises, acompanhada pela preocupação constante de sofrer novos ataques. A frequência e a gravidade dos ataques variam segundo as pessoas.
De acordo com o psicanalista Douglas Brito, responsável pela criação de um grupo de apoio aos portadores da doença em São José dos Campos, 5% da população brasileira sofre de algum transtorno ligado ao pânico –ou seja, 30 mil joseenses podem ter a síndrome. “Quase 2.000 pessoas passaram pelo Gaspan (Grupo de Autoajuda aos Portadores da Síndrome do Pânico) desde dezembro de 2001. No entanto, a maioria não chegou a participar efetivamente, pois o medo de falar sobre o assunto é tão grande que muitos nem conseguem vir às reuniões”, comentou.
O transtorno do pânico é mais comum entre as mulheres –a proporção é de três para cada homem– e os primeiros sintomas costumam aparecer na adolescência, até os 35 anos. Segundo Brito, a maioria dos portadores da doença tem entre 21 e 40 anos, uma faixa etária que corresponde justamente à da população mais ativa profissionalmente. Entretanto, o psicanalista ressaltou que o Gaspan atende também crianças e idosos.
Estresse no trabalho
A pressão no trabalho é um elemento que favorece o desenvolvimento da síndrome do pânico. O estresse ligado às atividades profissionais é responsável por um grande número de casos. Daniela Amaral, uma assistente social de 35 anos, é um deles. Nascida e criada em Taubaté, ela desenvolveu a doença há um ano e meio, quando teve que trabalhar em São José. “Foi uma mudança muito radical. Estava bem em Taubaté, mas fui enviada a São José por motivos profissionais. A ideia de trabalhar aqui [em São José] me deixou muito infeliz e estressada. Tive a primeira crise na rodoviária. Simplesmente travei, não consegui entrar no ônibus. Perdi o controle sobre as minhas pernas. Depois disso, não pude mais ir sozinha. Toda manhã, minha mãe me levava à rodoviária e me colocava no ônibus. Às vezes passava mal, precisava ligar para ela para me acalmar. Ficava desesperada para sair”, contou Daniela, que trabalha em uma ONG (Organização Não-Governamental) em São José.
“Também não conseguia andar sozinha na cidade. Certa vez fui visitar uma colega de trabalho e não consegui sair da casa dela. A escada não tinha corrimão, e travei de novo. Minhas pernas se recusaram a andar. Tive que descer a escada sentada”, disse. Para Daniela, uma das principais consequências da síndrome de pânico foi a perda da autonomia. “No auge da doença, as atividades mais simples eram difíceis para mim. Vivia acompanhada por minha mãe ou por colegas de trabalho. Não podia fazer nada sozinha”.
Hoje, Daniela considera que o pior já passou. Ao contrário de Sandra, que ficou mais de uma década trancafiada dentro de casa, ela procurou ajuda imediatamente. Até porque já tinha passado por esta situação antes. “Tive minha primeira crise de pânico na faculdade, aos 22 anos. Esta crise foi seguida por várias outras. Na época, fiz um tratamento com paroxetina [um forte antidepressivo] e calmantes e melhorei. Fiquei muitos anos bem. Agora, combino medicamentos com terapia. Tomo venlaflaxina [um antidepressivo mais brando] e faço análise uma vez por semana. Hoje posso dizer que tenho uma vida normal. Ainda tenho medo de altura e tento evitar multidões. Até vou a shows, discotecas e bares de vez em quando, mas não fico muito. Tenho medo de ter outro ataque”.
Predisposição
As circunstâncias responsáveis pelo surgimento do transtorno do pânico não estão cientificamente comprovadas, mas fatores genéticos, de personalidade e estresse potencializam a predisposição. Assim, algumas pessoas estariam mais propensas do que outras a desenvolver a doença. Sandra –cuja filha de 20 anos tem fobia social– e Daniela têm alguns traços de personalidade em comum. “Sempre fui ansiosa e medrosa, desde criança. Depois, quando cresci, fui me tornando cada vez mais controladora, estressada e crítica comigo mesma”, avaliou Daniela. “Sempre fui perfeccionista ao extremo. Era tão chata que as pessoas tinham medo de mim. É por isso que meus pais custaram a acreditar na minha doença. No início, achavam que era frescura minha”, comentou Sandra.
Muitas vezes, os ataques de pânico são provocados por um trauma, como um assalto, um acidente ou a morte de um membro da família. A atriz e professora de teatro, Alexandrina Lixa Palosa, 42 anos, teve a primeira crise aos 11. A história dela é, no mínimo, surpreendente. “Certa noite estava na igreja e vi alguma coisa no céu. Um objeto grande, redondo, de cor vermelha. Parecia um disco voador. Todas as pessoas que estavam lá viram e ficaram muito assustadas. Achei que fosse o fim do mundo. Tive minha primeira crise de pânico uma semana depois”, contou a mulher nascida no Mato Grosso do Sul, que se mudou para São José com a família pouco depois do episódio.
Alexandrina fez um tratamento psicológico dos 12 aos 22 anos. Casou pouco antes de completar 18 anos. Durante os sete primeiros anos de casamento, não teve um único ataque. Porém, problemas conjugais ligados ao alcoolismo do marido fizeram com que o problema voltasse com mais força. Retornou à terapia, mas continuou desprezando os remédios. “Nunca gostei. O mais forte que já tomei foi rivotril [um tranquilizante do grupo dos benzodiazepínicos]”. Durante este período, teve de aprender a conviver com seus medos e a domá-los. “Tinha pavor de elevador. Só conseguia entrar se fosse com uma pessoa de confiança. Também não atravessava a rua sozinha. Perdi muitos trabalhos em São Paulo e no Rio de Janeiro porque tinha medo de cidade grande. Hoje, ainda tenho medo de multidão, mas não deixo de sair por causa disso. Aliás, não deixo de fazer nada por causa da doença. A vida não pode parar”, afirmou Alexandrina, admitindo, porém, que não voltou a dirigir e que ainda não consegue ver notícias trágicas na televisão.
Lidar com acontecimentos traumáticos continua sendo difícil. Alexandrina teve sua última crise de pânico há cerca de dois meses, pouco tempo após a morte de um sobrinho. “Na hora, chorei muito, mas consegui controlar. Alguns dias depois, tive um ataque muito forte. Meu coração disparou, minha vista escureceu, minhas pernas amoleceram. Foi horrível”.
Autoestima baixa
Além do pânico, Sandra, Daniela e Alexandrina têm outro ponto em comum: a terapia teve um papel muito importante em sua recuperação. “Faço três sessões por semana. É muito importante para mim. Agora consigo superar as crises com as técnicas que aprendi na terapia”, disse Alexandrina. O Gaspan, que a atriz frequenta até hoje, ensina técnicas de relaxamento, meditação e terapia cognitivo-comportamental, que consiste em focalizar o pensamento em coisas positivas. Outro aspecto trabalhado na análise é o resgate da autoestima, geralmente muito abalada pela doença.
“Passei 13 anos enclausurada, sem falar com ninguém. Minha autoestima foi ficando cada vez mais baixa. Comecei a terapia em 2001. Depois de tantos anos em casa, tive a reaprender a andar na rua, a interagir com as pessoas. No início foi assustador. A terapia ajudou a levantar minha autoestima”, disse Sandra, que não sofre ataque do pânico há mais de dois anos. “A análise me ajudou a ter mais paciência, a entender que não é possível controlar tudo. Continuo sendo uma pessoa ansiosa e controladora, mas agora sei lidar com isso”, explicou Daniela.
Medo do medo
Frases de motivação como “eu sou capaz” ou “dar um passo de cada vez” podem parecer chavões, mas fazem muito sentido para pessoas que sofrem com uma doença imprevisível como o transtorno do pânico. Para elas, cada passo adiante, cada progresso realizado, cada medo superado, representa uma grande vitória. “Em 2006, fui ao cinema com minha filha pela primeira vez. Fiquei muito feliz. Ainda fomos ao restaurante depois. Antes não podia ver programas tristes e agora assisto até filmes de terror com minha filha”, disse Sandra.
Antes do primeiro ataque de pânico, Sandra tinha um sonho: ir a Paris. Infelizmente, a crise impediu a viagem. Talvez não seja tarde demais. “Minha filha quer fazer pós-graduação na França e quer que eu vá com ela. Não sei se estou pronta. Não tenho crise há muito tempo, mas ainda tenho receio de ter. É o medo do medo”, disse. De fato, para quem não sai de São José há 20 anos, uma viagem para outro continente tem ares de missão impossível. No entanto, para o psicanalista Brito, que a conhece há quase uma década, Sandra tem hoje todas as condições de se lançar à conquista deste objetivo. “Não há dúvida de que tal iniciativa seria uma imensa vitória sobre uma doença conhecida como ‘a soma de todos os medos’”. •
Nenhum comentário:
Postar um comentário