Desaparecidos: um drama social
A cada dois dias, em média, três pessoas desaparecem em São José, deixando famílias desesperadas por notícias que possam levar ao paradeiro do ente querido
Na pequena casa de três cômodos no bairro Colonial, zona sul de São José dos Campos, quadros e imagens de Nossa Senhora Aparecida dividem o espaço nas paredes e prateleiras da estante com os retratos da família Rodrigues. No quarto, uma pintura de São João Batista e um crucifixo de madeira ficam aos pés da cama de casal, onde a estudante Shaiane da Silva Rodrigues dormiu pela última vez na companhia da mãe. Ao lado, um guarda-roupa que a jovem de 18 anos dividia com o irmão mais novo. Dentro de duas portas, seu vestido favorito, suas bijuterias, material escolar e um tênis novo que ganhou do pai. Faltavam apenas uma calça jeans, uma blusinha de alça vermelha e um tamanco verde –roupas que estavam com Shaiane quando saiu de casa na noite do dia 13 e agosto de 2010, uma sexta-feira, por volta das 20h, para ir à casa de uma amiga e desapareceu. “Eu sinto tanta saudade dela. Ficar em casa é uma tortura, queria saber se ela está bem, se está precisando de alguma coisa, se está sofrendo. Passa tanta coisa pela cabeça”, disse emocionado Ademir Rodrigues, 41 anos, pai de Shaiane, enquanto segurava uma foto da filha tirada durante a cerimônia de Crisma da jovem. O drama da família Rodrigues endossa uma triste realidade em São José dos Campos. A cada dois dias, em média, três pessoas desaparecem na cidade, deixando parentes e amigos desesperados por notícias que possam levar ao paradeiro do ente querido. Entre 1º de janeiro e 3 de dezembro, a Polícia Civil registrou 226 casos de desaparecimento –33% deles envolvem adolescentes com idade entre 12 e 17 anos. A taxa de desaparecimento em São José supera a de cidades como Campinas e São José do Rio Preto, por exemplo. No maior município do Vale do Paraíba, o índice é de 36 pessoas para cada 100 mil habitantes. Em Campinas, a taxa é de 28 para cada 100 mil pessoas e, em São José do Rio Preto, o índice é de 8,8 desaparecidos. Janeiro foi o mês que mais contabilizou ocorrências em 2010 (32 boletins), seguido por setembro, com outros 27 registros, em São José. Do total de casos, 169 (75%) pessoas desaparecidas voltaram para seus lares ou foram encontradas e 13 (6%) seguem com o paradeiro desconhecido. A polícia ainda apura 44 (19%) queixas, uma vez que os agentes não conseguem contato com os familiares para avançar nas investigações e confirmar se a “vítima” foi encontrada ou não, já que alguns dados passados no boletim são inexistentes. O levantamento realizado pela Polícia Civil também revela que a maioria dos desaparecidos em São José é do sexo masculino, com 148 ocorrências envolvendo homens (28 na faixa etária de 12 a 18 anos), contra 78 casos de mulheres, sendo 41 com idade entre 12 e 18 anos. Juliana Puccini, delegada assistente da Seccional de São José, disse que jovens e adolescentes, principalmente as mulheres, representam a maior fatia dos casos por problemas de relacionamento com a família e amigos. “Somem mais homens, mas a faixa etária de adolescentes mulheres desaparecidas é maior que a dos homens. Geralmente está ligado a problemas com namorado, família, amigos e ao tráfico de drogas. Pelo menos é isso que a gente identifica. São pessoas menos favorecidas financeiramente, que vivem em uma família desestruturada, onde o jovem pode sofrer algum tipo de abuso, como violência doméstica e sexual. Se o problema não está dentro de casa, ele está na companhia daquela pessoa”, explicou a delegada. No caso de Shaiane, apesar da simplicidade da família, o relacionamento com pais e irmãos, segundo a mãe Maria Vicentina da Silva, 40 anos, era saudável, sempre pautado pelo diálogo. “É uma menina boa, obediente, não chegava fora do horário em casa, não tinha motivo para sumir”, disse Maria Vicentina. O comportamento começou a mudar depois que a jovem passou a conviver com uma amizade diferente. “A Shaiane começou a ‘matar’ aula e reprovou na escola. Se afastou de alguns amigos para andar só com essa garota. Acho que ela induziu minha filha a fazer alguma coisa, porque depois que a Shaiane sumiu, ela veio aqui uma vez dizendo que minha filha poderia estar em São Paulo, num hotel. Fomos até lá e não encontramos nada. Depois ela sumiu também, não atende mais o celular”, afirmou a mãe. A esperança que Ademir e Maria Vicentina têm em encontrar a filha é o que dá força à família para continuar procurando por Shaiane. Agarrados na fé, todos os dias eles rezam um terço pedindo proteção à jovem. O casal também passa horas divagando, principalmente antes de dormir, sobre o que de fato teria acontecido naquela noite de sexta-feira, quando ouviram a última frase dita pela filha antes dela cruzar o portão de casa: “já volto”. O retorno de Shaiane não ocorreu. Passados mais de quatro meses do desaparecimento, pai e mãe se revezam ao telefone tentando contato por meio do telefone celular da filha, que insiste em dar caixa-postal. Ao ser questionado sobre qual era a maior característica de Shaiane, Ademir responde: “Ela é uma pessoa muito alegre”, disse, corrigindo o tempo verbal. “Sinto que ela está viva, jamais um pai vai esquecer a filha”.
Casos Dos 226 casos registrados de desaparecimentos em 2010, 158 pessoas foram encontradas com vida, outras 5 estavam presas em penitenciárias e delegacias da região, 1 hospitalizada e 5 mortas, sendo um suicídio. O balanço indica que a maioria dosdesaparecidos consegue voltar para casa, uns com a ajuda da polícia ou da imprensa, outros através da busca incessante dos familiares, ou ainda quando o efeito da bebida acaba. Para parentes e amigos, tanto faz o motivo, o importante é o reencontro. “O trabalho de busca da família e da polícia só termina quando a pessoa é encontrada. Os pais sempre têm a esperança de encontrar o filho com vida, mas já ouvi depoimentos de mães desesperadas dizendo que se encontrassem o filho morto, saberia ao menos onde ele está e que não estaria sofrendo”, disse a delegada Juliana Puccini. Francisco Chagas*, 42 anos, passou quatro meses de agonia dentro da casa em que mora, num bairro da zona leste de São José. A filha, de 19 anos, desapareceu após uma discussão com os pais que queriam proibir o namoro dela com um rapaz. “Ela simplesmente se encantou por ele, só ouvia ele, não queria saber mais de ninguém”, disse Chagas. Foram 122 dias à espera de um telefonema ou de qualquer notícia que pudesse levar ao paradeiro da jovem. “Pensei que tinha acontecido alguma coisa ruim, que estava morta. Ela sempre foi uma menina obediente, nunca tinha passado uma noite longe da gente”, lembrou o pai. O drama de Francisco terminou no dia 1º de dezembro de 2010, quando Mariana* ligou pela primeira vez à família dizendo que estava voltando para casa. Ela havia fugido para Botucatu (SP) e, segundo contou ao pai, foi mantida em cárcere privado, proibida pelo então namorado de manter contato com qualquer pessoa que pudesse resgatá-la. Mariana conseguiu fugir depois de procurar uma igreja evangélica da cidade e contar sua história ao pastor. “Ela disse que pediu dinheiro para comprar a passagem, já que o namorado só permitia que ela saísse de casa para ir à igreja. Passei dias horríveis buscando uma explicação para o que tinha acontecido. Hoje, graças a Deus, estou com a minha filha outra vez dentro de casa”, disse o pai.
Cadê você? Ana Maria de Faria, 47 anos, psicóloga, também invoca Deus ao lembrar do filho Ewerton Marcos Olympio, 27 anos, desaparecido desde 22 de abril de 2010. As orações pedindo proteção ao jovem são diárias, seja na companhia do marido, sozinha, ou em um grupo de oração da Capela Santa Edwiges, no Jardim Uirá, zona leste de São José. A última imagem que carrega dele é durante o almoço daquela quinta-feira, quando Ewerton se sentou à mesa sem camisa para fazer sua refeição na companhia dos pais –uma situação bem diferente da última notícia que recebeu sobre o paradeiro de seu filho. “Falaram que ele estava vivendo como mendigo em um viaduto próximo ao bairro Jardim Paulista. Na mesma hora tentamos encontrá-lo, mas sem sucesso. Ninguém viu uma pessoa com as características dele por lá”, disse em tom de lamentação a mãe, que luta para descobrir o paradeiro de Ewerton e entender o que aconteceu depois que saiu para trabalhar e não viu mais o filho. “Não sei dizer o que houve com ele, não sei mesmo. Deve estar bem, da forma dele, que ele acha que é o bem para ele. Todo mundo sente falta, saudade dele. Tanto a falta de notícias quanto a saudade doem muito. Acho que deveria ter consideração e ligar para tranquilizar a gente” afirmou. Passar dias longe de casa, segundo a mãe, tornou-se comum na vida de Ewerton. Dependente químico, já chegou a ficar três meses sem dar notícias à família. As tentativas de tratamento para abandonar o vício foram várias, mas todas fracassadas. “Ele nunca gostou de lutar, de batalhar, sempre gostou das coisas fáceis. Acho que os amigos podem ter influenciado muito em suas decisões”, contou a mãe. A preocupação de Ana Maria ficou ainda maior depois do dia 16 de outubro, data em que Ewerton completou 27 anos. O aniversário sempre foi comemorado, porém desta vez passou em branco já que o aniversariante não estava presente. “Pela primeira vez passamos o aniversário sem ele. Nunca deixamos de fazer uma festinha. Mesmo com toda a nossa simplicidade, procurávamos fazer uma comemoração. Comprar um bolinho e um presente para reunir a família. Sempre foi assim. Fiz muita oração neste dia, mas ele não veio para casa”, disse Ana Maria. Ewerton saiu de casa sem levar documentos, roupas ou qualquer outro objeto que possa ajudar na sua identificação. Como viu o filho pela última vez sem camisa, a mãe não consegue descrever como ele estaria vestido antes de desaparecer. A esperança de Ana Maria é que suas orações possam garantir proteção ao jovem, “onde quer que ele esteja”. “Não esqueço de pedir isso, todo momento ele está em minhas orações. Tenho certeza que uma hora vai dar tudo certo”.
Estatísticas Nos últimos cinco anos a Polícia Civil de São José recebeu 1.323 ocorrências de pessoas desaparecidas, a maioria em agosto e janeiro –23,1% e 22,8%, respectivamente. A média de casos solucionados é de 80%, no entanto, segundo a delegada Juliana Puccini, poderia ser maior, uma vez que informações desencontradas no Boletim de Ocorrência, como endereço e número de telefone, dificultam o trabalho dos investigadores. A delegada aponta ainda que um número expressivo de casos fica em aberto na delegacia mesmo após o aparecimento da pessoa. Isso porque a família esquece, ou mesmo não tem conhecimento, de que é preciso voltar ao Distrito Policial para registrar um novo boletim, constando o retorno do parente ou amigo. “Para chegar aos números detalhados de 2010, tivemos que pegar todas as ocorrências que ainda não tinham sido concluídas e tentar contato com a família. Vamos ter que fazer isso com os anos anteriores também, pois acreditamos que muitas pessoas já voltaram para casa. O problema é que alguns telefones e endereços estão errados ou não existem mais”, explicou a delegada. A revista valeparaibano acompanhou por alguns minutos o trabalho de um dos agentes. O investigador buscou 19 boletins aleatoriamente para tentar contato com a família do desaparecido. Desses, três números de telefone não estavam cadastrados, cinco estavam com a linha desligada, três não atenderam ao chamado, quatro tinham transferido a linha para outra pessoa e outros quatros informaram que o ente havia sido encontrado. Essas ocorrências foram registradas em 2006, ano em que 289 casos foram computados. Até então, 27 boletins de reencontro tinham sido lavrados. “É um trabalho demorado, que exige tempo e contingente de pessoas para conseguir resultado satisfatório. Desses casos que não conseguimos fazer contato mais com as famílias, queremos saber o que aconteceu”, disse Juliana Puccini. No Brasil, é estimado o desaparecimento de mais de 200 mil pessoas por ano, o que equivale a 548 desaparecidos por dia. São mais de 160 mil adultos e 40 mil menores de idade. Os lugares onde desaparecem as crianças são os mais comuns: saída da escola, voltando da padaria ou brincando na rua da própria casa. No ranking estadual de desaparecimentos de pessoas, São Paulo lidera, com 18 mil casos –junto com Rio de Janeiro e Minas Gerais, respondem por 40% dos casos no país.
Avaliação Para Eliana Levy, psicóloga especializada em psicologia infantil familiar, voluntária na ONG ABCD (Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas), mais conhecida como Mães da Sé, o fato de não se ter uma dimensão exata do problema do desaparecimento de pessoas dificulta o apontamento de soluções e alimenta o desinteresse da sociedade e do próprio Estado pelo drama das famílias de desaparecidos. “É um absurdo uma cidade tão bem estruturada economicamente como São José dos Campos ter uma média tão alta de desaparecidos. Acredito que isso seja reflexo da falta de investimentos em projetos sociais em todas as esferas governamentais. Este é um assunto delicado, que mexe com o sentimento das pessoas, para falarmos de uma maneira quantitativa. Temos que criar meios de valorizar o afeto familiar de estruturar famílias, seja ela de alta ou baixa renda”, disse a psicóloga. No Brasil, não existe um serviço exclusivo no campo da assistência social ou psicológica voltado às famílias de pessoas desaparecidas. Quem busca algum tipo de auxílio nessas áreas acaba recorrendo aos conselhos tutelares, postos de saúde e ONGs que tratam do assunto. O primeiro pode ser útil ainda na solução de desaparecimento com características de fuga, motivados ou não por algum tipo de violência doméstica. “O poder público terceiriza suas obrigações em alguns casos de maneira totalmente errada. O auxilio social no Brasil é uma péssima prestação de serviços que precisa ser revista”, afirmou Eliana. A maioria das crianças e adolescentes desaparece em locais conhecidos: voltando da escola, andando de bicicleta na rua de casa, indo à padaria. De acordo com Ivanise Espiridião da Silva, presidente da Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas, no período de férias, o número de crianças desaparecidas aumenta significativamente. Por isso, é preciso prestar mais atenção às companhias e locais que elas frequentam nesta época. “Nas férias as crianças estão mais soltas, com maior liberdade na hora de sair sozinha. Quando desaparecem, geralmente estão desacompanhadas, sem o cuidado dos pais e amigos. Uma criança não se perde, são os adultos que perdem ela. Em casos assim orientações básicas podem evitar que isso aconteça, como não aceitar carona de estranho, não deixar o filho sair sozinho, ficar atento a aglomerações e conhecer todos seus amigos”, disse Ivanise, que procura a filha há 15 anos. Entre os jovens, ela alerta sobre a importância de estar sempre presente na vida e, principalmente, nas descobertas dos filhos. “É difícil entender os motivos. Apesar de ser mais orientado, o jovem está na fase de descobertas e de rebeldia, acha que sabe de tudo. Você tem que mostrar que antes de ser pai e mãe é amigo do seu filho. Que ele pode confiar em você sempre, em momentos de agonia e de alegria”, explicou Ivanise. A ONG Mães da Sé nasceu há 14 anos. Atualmente, a organização conta com mais de 10 mil associados em todo o Brasil e já foi a responsável por localizar 2.100 pessoas.
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